terça-feira, outubro 26, 2004

Alguma coisa estava errada. A princípio ele não sabia o que era. Parecia que as cores estavam menos cores, as coisas menos coisas. Achou que tinha sido efeito de uma noite mal dormida, com algumas latas de cerveja e a luta habitual para acordar para ir ao trabalho. No almoço, a coisa piorou. Não é que a comida não tivesse gosto. Mas parecia que o gosto se desfazia a cada garfada que dava e que a própria comida se digeria antes de chegar ao esôfago. Levantou mais faminto do que antes e pagou a conta a uma mulher opaca e meio apagada que estava no caixa. A primeira coisa que notou que havia sumido foi o botão do elevador. Ele trabalha num prédio com 11 andares, mas o último não estava lá. Alguém pediu por ele no elevador e a ascensorista apertou o vazio, como se não tivesse se dado conta. Subiu junto com o elevador até lá, viu o display interno acusar o 11º. A porta abriu. Tudo estava lá. O andar, as pessoas, os telefones tocando. Menos o botão.
Acorda no outro dia banhado em suor, um calor insuportável. Abre os olhos e nota que o ventilador sumiu. A lâmpada, a estrutura, a fiação, tudo está lá, menos as pás. O susto o faz pular da cama e a cabeça gira com um corpo num ambiente sem gravidade que precisa da rotação pra manter o equilíbrio. Não existe fissura, nem ranhura. Apenas não está. No desespero, toma uma ducha fria, enfia a roupa e vai pro trabalho. Prédios, postes, um posto, uma passarela. E até um viaduto parecem que estão sumindo. Algumas partes já não existem. As pessoas parecem que não notam. Os carros passam por cima do vazio do viaduto sem cair, pessoas atravessam o nada das passarelas. O elevador do prédio só marca agora até o sétimo. Mais uma vez a ascensorista aperta o vazio e ele sobe. Nada. O andar sumiu. Pessoas saem do vazio, pessoas entram no vazio e ninguém parece notar nada. Ele dá umas dez voltas no elevador até notar o olhar intrigado da ascensorista e notar seu próprio olhar de desespero no espelho. Ao virar pra falar, gritar, sacudi-la, ela não está mais lá.
Acorda num leito de hospital. Um médico o observa. Perguntas de praxe. Ele tenta responder da maneira mais racional possível. Ele o olha num misto de pena e escárnio, escreve algo em sua prancheta e chama a enfermeira. Um alívio quente toma conta dele até que ele nota que o leito que ele está deitado não existe. Por baixo do lençol, a não existência o sustenta. Foge, e fugindo dá se esbarra em pessoas sem cabeça, sem pés, sem olhos que andam, falam e vêem. Corre pelas ruas sem ruas. As coisas parecem ser vistas através do vapor gerado pelo sol no asfalto. Para acuado num canto, numa viela onde a luz do dia não alcança e nota, pouco a pouco os prédios se desmancharem em vários fragmentos que giram cada vez mais rápido até desaparecer. O mundo se desmancha, se consome e parece não se tocar disso. Assustado, cansado, com fome, encontra um casebre onde ele sabia que não existia. A nitidez contrasta com todo o resto. Deita e dorme.
Acorda. Vazio. Nada. Nem frio nem calor. Nem claro nem escuro. Apenas a casa e o vazio. É como estar imerso numa massa fluída de pensamentos não concluídos. Quando sua mente ameaça entrar em colapso ele a vê. Lá ao longe. Uma sombra. Corre desesperado ao seu encontro. E ela está lá. O rosto conhecido. O Rosto. O Rosto de pele clara com as maçãs proeminentes, enquadrado pelos cabelos negros sempre o fizeram lembrar da lua cheia com a noite ao redor. E aqueles olhos. Bastavam eles para trazer a luz de volta. Estendeu os braços para aninha-la, para a reencontrar. Ela sorriu tristemente, esboçou um adeus e foi-se numa implosão silenciosa e seca. Ele olhou pra trás e viu a pequena casa afundar. O que restava do seu mundo se desfazia. E ele estava só no vazio.

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