quarta-feira, setembro 18, 2002

Acorda com um vazio ao seu lado. Não deveria ter ninguém ali, mas ele sente uma não-presença. Com a mente meio embotada, tenta se lembrar da noite passada. Breu. Não lembra de ter sonhado. Não lembra do que fez. Percebe que não lembra de nada. Nada da última noite, nem da anterior, nem dos dias. Não que tenha esquecido quem é, sua mãe, seus amigos, seu nome, essas coisas. Aliás, disso ele lembra até demais. Mas é como se a não-presença estivesse se extendendo por todo seu passado. É como se um plano nulo o tivesse seguido por toda vida. Acende um cigarro, ainda na cama, e levanta pra abrir a janela. Não consegue. A claridade o cega, como se nunca tivesse usado os olhos antes. Volta pra cama e fuma observando o ventilador no seu eterno girar, que não chega a lugar algum. Percebe que o som produzido está mais alto do que o normal, quase insuportável. Um zunido surdo que se forma dentro de sua cabeça. Música. Volume no máximo, guitarras distorcidas e o zunido entra no tom. Joga o toco no cinzeiro e olha as horas. Está atrasado. Não se irrita. Resolve não ir trabalhar. Não se alegra. Percebe então que, além do vazio, não sente mais nada. Nem frio, nem calor, nem dor, nem medo, nem alegria, nem esperança. No rádio, alguém canta: "uma emoção pequena, qualquer coisa". Nada. Lembra das pessoas que passaram na sua vida. As que o fizeram mal e as que o fizeram bem. E ainda as que não fizeram nada. Tudo é inútil. Tudo é uma sucessão de fatos que acabam no mesmo lugar. O celular toca, ele vê quem é. Do trabalho. Não atende. Acende outro cigarro. O telefone de novo. Ele já pega com palavrão escorregando pela boca, não por irritação, mas por hábito. Não é do trabalho. É alguém. Alguém que o fez bem. Não lembra da sensação, não lembra como é se sentir bem, mas sabe que foi assim que se sentiu. Mas agora, olhando o nome no visor, não sente nada. Joga o telefone no vaso, junto com o cigarro e dá descarga. A privada entope e regurgita o telefone, o cigarro e o que mais tinha no cano. A água fétida inunda o banheiro e molha seus pés. Só o soube porque viu. Não sentiu o toque da água, não sentiu o cheiro do esgoto. Abaixa e toma um longo gole, tomando cuidado pra sorver o máximo de podridão que voltou junto com a água. Não sente gosto, não sente nojo, não sente náuseas. Volta e deita na cama. Não sente conforto, mas permanece deitado. O rádio toca estática, mas não se importa. Fica o dia ouvindo a mistura de sons do ventilador, da estática e das baforadas. Olha as horas. O dia vai pro seu final. Não comeu nem bebeu nada, mas não tem fome nem sede. Percebe que o nada, o nulo também está no seu cérebro. De repente, ele percebe. Está morto. O coração bate, ele respira, ele vê, ele ouve. Mas está morto. Não há mais nada. Não se assuta. Não se importa, nem pergunta como aconteceu. Não acha ruim nem bom. Apenas morreu. Deitado, olhando pro ventilador, contempla a morte, como contemplou a vida. Como as voltas do ventilador, que nunca chegam a lugar algum. Apaga o cigarro, amassa a carteira vazia, vira e vai dormir.

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